CIR.CUNS.TAN.CIAL A0.N1

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O artista tem a responsabilidade... a responsabilidade de criar e ceder as suas visões aos que não sabem observar e meramente olham. De entre essa corja, dos artistas, temos o poeta. E esse, disponibiliza as suas palavras que dão voz aos de língua atada. Portanto, ele é responsável pelo que se diz e desdiz pois a ele lhe competiu empregar esta e aquela palavra e formular assim tais ideias e julgamentos. E se uma palavra nada mais é do que um conceito desenhado, o desenho por sua vez nada mais é do que uma palavra difusa. Ou será ao contrário?

Bem, esqueçam... o meu querido Listopad ensinou-me que as palavras não nos pertencem e que apenas as pedimos emprestadas. Eu cá roubo-as. Roubo-as sem vergonha e disponho-as assim trôpegas umas depois das outras e mal enjeitadas e quase que a tropeçarem nos maneirismos. Por vezes são assim fugidias e com toda a fúria do momento, mas sentidas. Depois, quando elas se me escasseiam, reciclo-as. Uso-as e abuso-as descaradamente até as figuras de estilo fraquejarem e por terra tombarem. E ali ficam, elas caídas assim no papel, despojadas de sentido.

E assim descrevemos vidas vivenciadas e vivências fantasiadas e por entre linhas mentimos com todo o amarelo deste papel envelhecido. E tu leitor. Sim, tu. Estende-lhe a mão. Vá lá. À palavra, essa. A palavra dar-te-á propósito e voz, e tu a ela devolverás préstimo e sentido. Pois é nessa falsidade que residem as nossas mentiras mas são elas verdades que a outros pertencem.

Mas cuidado, não estou aqui a dizer que o leitor é unicamente um cão comedor de restos que lhe são atirados. Bem pelo contrário, do banquete que vos apresentamos, meu caro comum mortal, viverão mil vidas que nós fantasiamos apenas.

Vamos a ver... é o que for e tiver de ser.

Vamos a ver, e no entretantos faço de conta que sei o que estou aqui a fazer.

Mas não esqueçamos os previamente referidos e literais criadores de imagens. Esses que rabiscam e empastelam o papel de matéria sobreposta e entreposta sucessivamente tentando diluir as camadas anteriores que não lhes satisfizeram. Esses ingratos que se decidem a ignorar a palavra e as suas legítimas competências. Esses indivíduos de difícil trato que se dignam a pensar e a formular quimeras através de artifícios imagéticos. Ora este ordinário método de atuar só pode ser reles e vulgar. A palavra é pura e autêntica e por sua vez a imagem é prolixa e difusa. Disso não posso estar errado. A palavra, se concisa, não deixa margem a dúvidas, já a imagem apresenta múltiplas leituras. Leituras? Alto lá! O que é que eu acabei de escrever? Que a imagem é lida? Não tarda vão-me dizer que a palavra tem múltiplos sentidos. É porque se a imagem tem múltiplas leituras e a palavra tem múltiplos sentidos, a responsabilidade que nos assiste é acrescida. Já para não falar das múltiplas erróneas interpretações. - A cadeira é azul e prontos. Nada mais! Eu quero que seja azul e não há outra razão para além do meu devaneio pessoal. Deixa-ma pintar de azul!

Isto posto, ficam aqui estas páginas e a ti caberá a decisão de as usares como tuas verdades ou não. Abdico de responsabilidades e digo que exclusivamente desfrutes. Alerto apenas que no dia que eu cair, cairão comigo todos os que me parafraseiam.

Mas olha, em consequência de toda esta verborreia talvez seja melhor criares. Mas cria! E cria "sem grandes ambições nem disposições de agradar a ninguém". E o que não gostares coloca na borda do prato mas não coloques ao lixo. Lá haverá um cão sarnento e esfomeado a quem essa borda de prato saciará.

- anónimo coroado, X 30 2021

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