CIR.CUNS.TAN.CIAL A0.N2
"1ª edição"
REF a0n2_01
sobre
'Entre as dúvidas do que isto tem sido e do que quer ser, fica a incerteza do que é.' A incerteza de uma ata ou de um termo de encerramento; talvez ambos, o encerramento de uma série e um ato de recomeço.
A finitude é uma condição que nos assiste a todos invariavelmente. "Todos somos circunstanciais" relembra-nos a frase ecoante de Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo. E se a finitude é uma condição das nossas carcaças, também ela transpira para as coisas mundanas fabricadas por essas mesmas carcaças. A luta é constante e esta zine padece da mesma finitude. Termina o ano zero e alveja-se um eventual ano um. Forma ridícula esta de medir uma grandeza física como o tempo tendo por base órbitas de corpos celestes. Ridícula, mas poética.
***
"O tempo não me diz nada." A noite não tardou a cair e encerrou-nos, criaturas, no conforto desconfortável do lar. Jamais poderiamos supor o destino que nos aguardava, enclausurados assim no nosso habitat natural por esse carrasco invisível.
A noite não tardou a cair mas o sono não tardou. O sono, esse, apazigua as feras mais temerosas.
Amanhã acordaremos.
Negrume da hora. A manhã do amanhã aproxima-se. Tudo parece idêntico e desconcertante ao mesmo tempo. A luz é distinta. O aroma é mais quente. As sombras são um pouco mais ríspidas e tombam com o peso. O silêncio é rasgado pelos esgares das crias que pressentem a diferença. Em breve o território será disputado, mas até lá a estranheza da serenidade temporária permeia-se pelos últimos feixes doirados empoeirados.
Também a sombra dos progenitores tomba numa batalha que irá perdurar.
As carcaças erguem-se, de caminhar pesado, estacadas pelas indeléveis sombras ainda que de contornos agora um pouco mais ténues. E é assim, agrilhoados a esse vulto que nos arrastamos. Esse pesar adivinha os passos e como que os precede. Somente o manto da noite o extingue, e com ele também somos nós devorados.
Vá, cerra as pálpebras e corre. Talvez assim te libertes da sombra que te persegue. E de dentes arreganhados contra a parede, na pior das hipóteses, sentirás o sabor a ferro.
Esgravatas a terra e sentes-te livre. Nem reparas que o pequeno lote, que mal te preenche as unhas, é composto por outros a ti similares.
O futuro desconhecido não me mete medo, já o futuro expectante é terrífico. E neste ossário natal reside o incrível turbilhão de sentidos que nos compõem, e vertiginosamente nos afogamos. O corpo lacerado é já incapaz de distinguir o fogo que lhe aquece a alma dos ferros em brasa que o estacam ao leito. E prostrados, de corpos inertes, nesse mesmo leito que já não reconhecemos, tentamos protelar o inevitável.
'Resta-nos criar narrativas de imenso deleite em tempos tão sombrios.'
***
Podia quedar-me por aqui e talvez o faça, é que na verdade não tenho muito mais a acrescentar aos cães esganados que ainda me querem ler e portanto talvez seja mesmo tempo de me calar e dar voz à obra imortal dos que outrora finaram, como já tem sido hábito em demais participações póstumas. Coincidentemente a tinta espessa da minha esferográfica já não escorre com a mesma facilidade de outrora. Talvez esperassem mais uma ata com reminiscências dos inagualáveis prefácios de Jorge de Cena e levaram com isto. Prontos.
Da "Divina Comédia" de Dante Alighieri deixo-vos um trecho do canto XXXIII que retrata o conde Ugolino della Gherardesca e os seus filhos. O conde vislumbra o seu próprio estado no rosto da sua prole que padece do mesmo infortúnio, da fome na cela da qual são todos cárceres. É pois nesse espelho angustiante que ele adquire consciência da sua própria circunstancialidade.
O nosso Fernando Pessoa na sua poesia ortónima "Nevoeiro" publicada na obra "Mensagem" presenteia-nos com um Portugal debilitado a entristecer, e etéreo como um fogo-fátuo. "Glória antiga" ?
Já Edgar Allan Poe, no seu poema "Visit of the Dead" que mais tarde seria intitulado de "Spirits of the Dead", mergulha-nos na solidão e apresenta-nos os seus will-o'-the-wisp como pequenas centelhas de esperança para os mortais, e em "Paradise Lost" John Milton descreve-nos um pernicioso e vagabundeante fogo de enganosa luz.
Que posso mais acrescentar? Serás esquecido. E a tua obra, se tanto, será atribuída a autor desconhecido ou autor anónimo. Todavia pergunto-me: Que mais poderemos nós desejar? Nada. Basta-me que a obra supere os tempos e o autor e portanto sê-te fiel.
Entretanto: regista o verbo, frutifica a terra e mantém a espécie.
Noutros assuntos...
porto 01, II, 2022
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ficha artística
DIREÇÃO anónimo coroadoCONSULTADORIA ARTÍSTICA Filfunk, Migvel Tepes
ARTISTAS anónimo coroado, Dante Alighieri, Edgar Allan Poe, Fernando Pessoa, John Milton, Jorge Mendonça, Miguel Korreia, Migvel Tepes, Pedro Araújo, Ricardo Falcão, Rui Leitão, Serse Luigetti, Zlatko Krstevski
DESIGN anónimo coroado
CAPA anónimo coroado
REVISÃO Migvel Tepes, Rui Leitão
PAGINAÇÃO anónimo coroado
IMPRESSÃO E ACABAMENTO anónimo coroado
ENCADERNAÇÃO anónimo coroado, Rita Betânia
EDITORA chicoispertoedições
PRODUÇÃO coletivo depressivo
APOIO neoglifo.pt
depoimentos
Gostei muito deste formato, de alguns trabalhos que estão aqui. Outros menos, mas isso é natural. Há os gostos pessoais.
raider técnico
REF. E 007TÍTULO CIR.CUNS.TAN.CIAL
SUBTÍTULO fogo factum
NÚMERO A0.N2
ANO dezembro 2021
LOCAL porto, portugal
PÁGINAS 52
DIMENSÕES 297 X 105 mm
DEPÓSITO LEGAL 488144/21
EDIÇÃO 1ª
TIRAGEM 100
CAPA impressão laser e folha doirada em cartolina 180gr
MIOLO impressão laser 70gr
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